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A QUEDA DE DARFUR

Por Lucas Siqueira

Ontem, 28 de outubro de 2025, a guerra no Sudão atingiu um novo e trágico episódio. A cidade de El-Fasher, capital de Darfur do Norte e último bastião do Exército Sudanês na região, caiu nas mãos das forças paramilitares Forças de Apoio Rápido, conhecidas como RSF. A ofensiva foi brutal. Os vídeos que circulam na internet, alguns divulgados pelos próprios paramilitares, mostram bairros inteiros bombardeados, execuções sumárias públicas, hospitais destruídos e milhares de civis fugindo sob fogo cruzado.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos descreve a situação como “catastrófica” — uma verdadeira repetição das tragédias étnicas que marcaram Darfur nos anos anteriores.

Mas o que está realmente em jogo no Sudão? Quais os interesses por trás dessa guerra que parece não ter fim?

Para entender, é preciso conhecer quem são os agentes em disputa.

De um lado está a RSF, a força paramilitar comandada por Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti. Ela nasceu dos antigos Janjaweed — milícias árabes que, entre 2003 e 2008, apoiadas pelo governo sudanês, cometeram o que observadores internacionais classificaram como “limpeza étnica” contra as populações Fur, Masalit e Zaghawa em Darfur, com milhares de mortos e milhões de deslocados.

Desde então, a RSF cresceu até se tornar uma organização poderosa, controlando minas de ouro, rotas de contrabando e recebendo apoio externo. Segundo o Council on Foreign Relations, a RSF é hoje um dos grupos armados mais ricos do continente africano.

Do outro lado, estão as Forças Armadas Sudanesas (SAF), lideradas pelo general Abdel Fattah al‑Burhan — que, segundo as últimas notícias, permanece vivo e em posição de comando.  É o exército tradicional do país, herdeiro direto do antigo regime militar. Desde abril de 2023, Burhan e Hemedti travam uma luta por poder que destruiu a capital, Cartum, e transformou o Sudão num campo de batalha fragmentado — como descreve o The Washington Post.

E no meio disso tudo, os civis — comunidades inteiras forçadas a abandonar suas casas, mais de 12 milhões de pessoas deslocadas, cerca de metade da população sudanesa passando fome, segundo estimativas da ONU.

ONGs relatam campos de deslocados atacados, acesso humanitário severamente limitado e um cenário de colapso social e sanitário.

Mas o Sudão não está sozinho nessa guerra. Por trás das armas e das ofensivas existe um tabuleiro de interesses estrangeiros que alimenta o conflito.

A Emirados Árabes Unidos (EAU) aparece como ator central: investiu mais de 2 bilhões de dólares em projetos no Sudão — em agricultura, infraestrutura e reservas financeiras — enquanto é acusada de envolvimento no fornecimento de armas à RSF, o que ela nega.  Para o EAU, a aquisição de terras agrícolas sudanesas garante o fornecimento de alimentos para sua população, já que o Sudão é visto como “celeiro” dos EAU. Outro investimento do país no sudão foi o desenvolvimento do porto de Abu Amama, ao longo do Mar Vermelho — um projeto de cerca de 6 bilhões de dólares que foi cancelado pelo governo sudanês em Outubro de 2025, explicitamente citando o papel dos EAU no conflito. Em maio de 2025 o governo sudanês cortou relações diplomáticas com os EAU, acusando-os de apoiar a RSF em campanha “genocida”.

O papel da EAU, portanto, trata-se de segurança alimentar e desenvolvimento, mas não para o povo sudanês, que paga o luxo alheio com seu próprio sangue e vida.

O Egito, que faz fronteira com o Sudão e recebe uma grande quantidade de sua população refugiada, também atua nesse jogo. Segundo a análise da J Street, o governo egípcio está interessado em manter estabilidade na fronteira, controlar rotas migratórias e para isso: tenta preservar a influência do exército sudanês sobre o Estado.

Os Estados Unidos, por sua vez, atuam em estreita coordenação com os interesses de seus aliados — os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita —, impondo ao Sudão, já devastado pela fome e pela guerra, uma nova rodada de sanções. Medidas que, sob o discurso de “pressão diplomática”, acabam por asfixiar ainda mais a economia e dificultar qualquer tentativa de reconstrução ou governabilidade.

No fundo, o Sudão é hoje o espelho de uma disputa geopolítica muito maior. Quem dominar o país, domina as minas de ouro, o acesso ao Mar Vermelho e rotas comerciais que ligam o Sahel ao Golfo. Os relatórios da Chatham House e da Africa Intelligence revelam que o controle de portos como Port Sudan e das jazidas minerais é uma das chaves da guerra — e uma das razões pelas quais ela não termina.

A luta pelo ouro e pelas rotas comerciais transformou o Sudão num campo de extração e lucro, onde empresas privadas de segurança e redes de mercenários oferecem proteção em troca de concessões e contratos. É um mercado de sangue e minério.

E as consequências ultrapassam as fronteiras. A queda de El-Fasher pode consolidar a divisão do país, empurrar milhões de pessoas para os países vizinhos e abrir espaço para novos crimes de guerra e limpeza étnica. Enquanto isso, as entes internacionais — a Nações Unidas, a União Europeia e a Liga Árabe — pedem cessar-fogo e corredores humanitários. Mas a mediação internacional segue travada por interesses opostos.

O resultado? Um país despedaçado, uma população em situação de catástrofe humanitára e uma guerra que se alimenta das riquezas que o mundo tanto deseja. O ouro, o território, o poder — tudo parece valer mais do que a vida.

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