Thiago Ávila – Em um mundo em conflito, em constantes transformações, é muito importante que a gente consiga acessar a verdade. Nem sempre a gente vai encontrar
essa verdade nos noticiários. Muitas vezes a gente vai ter que ir além dos caminhos convencionais. A gente sabe que a história e a construção ideológica muitas vezes tentam pintar forças que estão cometendo opressões como “bonzinhos”. E fazem isso através de várias formas, inclusive a partir de uma informação fabricada da história como dos fatos recentes.
E para que a gente consiga se aprofundar no que é a história dos povos e verdadeiramente
o que acontece no mundo hoje, eu estou aqui com o Senhor Embaixador da República Islâmica do Irã no Brasil, senhor Abdollah Nekounam.
Muito prazer, senhor Embaixador. Eu agradeço muito pelo senhor estar fazendo essa entrevista. Eu tenho certeza que o público brasileiro quero muito saber o que está acontecendo nesse momento. E eu queria começar fazendo exatamente essa pergunta para o senhor. As pessoas estão chocadas vendo um genocídio contra o povo palestino e que agora escala para um ataque direto à República Islâmica do Irã. Como o senhor e o país que o senhor representa interpretam esse momento?
Embaixador Abdollah Nekounam – Estou muito feliz por tê-lo ao nosso lado aqui, em segurança, após essa difícil viagem que o senhor fez com o navio Madelin. Vi as imagens de sua chegada ao aeroporto, quando abraçou seu filho após o retorno — foram momentos extremamente emocionantes e puros. Para mim também é uma honra estar ao lado de um brasileiro, defensor dos direitos dos oprimidos na Palestina, alguém que arriscou a própria vida para levar ajuda ao povo de Gaza. Esse seu ato será registrado na história do Brasil como um povo defensor dos oprimidos no mundo.
Quanto a esse ataque e agressão do regime sionista contra a República Islâmica do Irã, devo também lhe descrever o cenário nas primeiras horas em que o incidente ocorreu.
Imagine estar em casa com sua família em um sábado. Você já fez as tarefas do fim de semana, realizou suas compras, voltou para casa e está descansando, tendo planejado o domingo, que é feriado. Especialmente se a segunda-feira, após esse feriado, for um grande dia festivo em seu país — de modo que as pessoas até programam eventos importantes como casamentos para essa data, organizando tudo com meses ou até um ano de antecedência. Inúmeras pessoas no Irã estavam se preparando para realizar suas comemorações no dia seguinte ao ocorrido.
Com essa introdução, imagine que você está descansando em casa e, às 3h30 da madrugada, é surpreendido por sons de explosões. Isso enquanto, dois dias depois, você teria a sexta rodada de negociações com partes estrangeiras.
Ou seja, tudo estava preparado para que você estivesse em paz com sua família, mas, de repente, às 3h30 da manhã, é confrontado com explosões no seu quarto e local de descanso. Infelizmente, isso levou ao martírio de um grupo de iranianos civis e de militares que estavam em casa, fora de serviço, descansando com suas famílias.
De todo modo, esse ataque militar ilegal e violento resultou no martírio de cidadãos iranianos e na destruição de algumas instalações militares nas primeiras horas do ataque.
O regime sionista acredita ter obtido uma grande vitória ao matar comandantes militares no Irã. No entanto, mesmo conforme o direito internacional, os militares que estão fora de serviço, especialmente em suas casas, com suas famílias, e em condições de não combate, são considerados civis.
Eles imaginaram que, eliminando líderes militares iranianos, poderiam alcançar algum êxito. Mas, em pouco tempo, com a liderança do Irã, os comandantes substitutos foram nomeados em menos de meio dia e, em pouco tempo, com base na Carta das Nações Unidas e no direito à legítima defesa, começamos a responder ao regime sionista.
Durante toda essa guerra, assim como na guerra imposta anterior, o único objetivo do Irã foi proteger a vida dos civis e garantir que nenhum inocente fosse ferido.
Essa postura da República Islâmica do Irã não é por motivações políticas, mas por princípios de fé e humanidade. Por isso, mesmo durante os oito anos da guerra imposta por Saddam Hussein, ex-ditador do Iraque, contra o Irã, nunca utilizamos armamentos que pudessem atingir civis.
Nesta resposta legítima — que é nosso direito — temos o máximo cuidado de atacar apenas alvos militares e, em resposta proporcional, instalações econômicas e técnicas do regime sionista envolvidas diretamente contra o Irã.
Tudo isso é exatamente o oposto das ações violentas e desumanas que o regime sionista tem praticado nos últimos dias, ao atingir civis, crianças, mulheres e até ambulâncias transportando feridos.
Essa forma de enfrentamento da nossa parte vem de uma história e civilização milenar, com inúmeros exemplos de ajuda aos povos e religiões diferentes por parte do povo iraniano. Certamente o senhor já ouviu a história de Ciro, o Grande, e a maneira como ele tratou os judeus há milhares de anos. Há cerca de 2.500 anos, Ciro, o Grande, ajudou na libertação dos judeus escravizados na Babilônia. Ainda hoje, temos no Irã uma minoria judaica que vive tranquilamente ao lado dos demais iranianos — muçulmanos, cristãos, zoroastristas — e testemunhamos uma convivência pacífica entre religiões em nosso país.
Inclusive, essas minorias religiosas possuem representação no Parlamento Islâmico, que é a mais alta instância legislativa do Irã, e conforme nossa Constituição, independentemente do número de membros, cada minoria religiosa tem direito a um assento parlamentar.
Portanto, somos um povo cuja vida se baseia na convivência pacífica com diferentes religiões e visões, algo que temos demonstrado ao longo da história.
Nossa oposição ao regime sionista não se deve à fé judaica, mas às visões extremistas e egoístas de um partido político dominante em Israel. Ontem mesmo, o porta-voz do nosso Ministério das Relações Exteriores, acompanhado de líderes judeus, visitou o hospital e esteve com os feridos desse ataque agressivo do regime sionista.
Thiago Ávila – Embaixador, o senhor estava explicando sobre os ataques sionistas ao Irã. No entanto, a imprensa mundial, sobretudo nos Estados Unidos e no Norte global, trata como se fosse o contrário. Como se o Irã fosse uma grande ameaça, uma ameaça nuclear, à paz do mundo, e que Israel fosse uma nação pequena, indefesa, cercada por vizinhos hostis.
Eu tinha 16 anos quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, mentindo, dizendo que ali havia armas de destruição em massa. O senhor acredita que essa fabricação da imprensa do “Irã enquanto ameaça nuclear”, também tem esse mesmo objetivo de justificar um envolvimento dos Estados Unidos em uma invasão de larga escala à República Islâmica do Irã?
E eu te pergunto isso porque, embora o Irã não tenha uma única arma nuclear, Israel tem de 80 a 400 ogivas nucleares. Nunca permitiu uma única inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica, se recusou a assinar o Tratado de Não-Proliferação de Armas atômicas, ataca todos os seus vizinhos e comete um genocídio contra o povo palestino e, ainda assim, tenta colocar o Irã como ameaça à paz mundial.
Como o senhor interpreta essa ação midiática de tentativa de fabricar um consenso para um ataque ao povo iraniano?
Embaixador Abdollah Nekounam – Vejam, a situação atual é bastante diferente daquela da época do ataque do Iraque, após a operação de Saddam Hussein no Kuwait e outos. Naquele tempo, os meios de comunicação tradicionais dominavam a opinião pública mundial, e nenhuma outra voz tinha capacidade de ressoar. Mas na situação atual, especialmente no contexto dos acontecimentos em Gaza, vimos que as redes sociais, os meios de comunicação independentes e todos esses canais de comunicação entraram em um confronto direto com os grandes veículos de imprensa internacionais. Houve uma competição muito séria e impactante, a ponto de que, mesmo nas capitais ocidentais e nos países do Norte Global, um grande número de pessoas foi às ruas influenciado por essas redes sociais, expressando claramente sua oposição ao regime sionista e a todos os seus apoiadores.
Agora também, diante da ofensiva militar do regime sionista — que, à luz do direito internacional, é classificada como um “ato de agressão” (Act of Aggression) —, vemos que o mesmo fenômeno ocorre no mundo. Os grandes meios de comunicação, posso afirmar, têm sido influenciados por esse ambiente comunicacional e pelas redes sociais. Ou seja, eles já não conseguem mais, como antes, apresentar toda a realidade de forma distorcida, pois a opinião pública mundial passou a ter acesso a fontes claras e à análise de fatos reais e concretos.
É por isso que, aqui, considero necessário agradecer à imprensa brasileira por manter o equilíbrio informativo e pelo compromisso demonstrado nestes dias em oferecer uma cobertura justa e equilibrada. Sei que esses profissionais estão sob forte pressão por parte da mídia tradicional internacional e também por certos setores internos no Brasil, que buscam influenciar a forma como as notícias são transmitidas ao público, conforme seus próprios interesses.
Aproveito esta oportunidade também para agradecer aos ativistas políticos, intelectuais e partidos brasileiros que, com discernimento político, compreenderam que a ofensiva militar do regime sionista contra o Irã é uma questão de altíssima relevância humana e jurídica no plano do direito internacional, e não permitiram que esse tema fosse reduzido a uma simples disputa entre partidos dentro do cenário político brasileiro. A elevação deste tema decorre, entre outros motivos, do fato de que o regime sionista — enquanto entidade que sequer é membro do TNP — lançou um ataque direto contra um país signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), cujas atividades nucleares têm caráter pacífico.
Os políticos conscientes sabem que, se permanecerem em silêncio diante de um ato hostil como esse, marcado pelo desprezo às normas e ao direito internacional, tal precedente poderá se repetir futuramente por parte de outros países. Trata-se de um risco grave para a humanidade, para o meio ambiente e para a vida humana.
Assim como o espírito sensível e emocional do povo brasileiro não pode aceitar que o massacre de inocentes — crianças, mulheres e idosos — seja reduzido a uma questão de disputa política interna neste país.
Thiago Ávila – Obrigado, Embaixador. O senhor estava falando sobre a questão da crueldade do regime sionista. E de fato, Israel comete genocídio e limpeza étnica há oito décadas contra o povo palestino, se estruturou em um estado de colonização e apartheid terrível contra aqueles povos da região e liderado por essa ideologia racista e supremacista, que é o sionismo, que coloca Gaza sob 18 anos de um cerco ilegal e que nesse momento escalou esse genocídio há 21 meses, com tamanhos crimes de guerra e tantas violações que chocam o mundo.
A República Islâmica do Irã sempre teve, por princípio, o apoio ao povo palestino, inclusive muitos dos ataques que Estados Unidos, Israel cometem contra o Irã tem a ver com o fato do Irã nunca ter abandonado a causa Palestina.
Eu queria perguntar ao senhor algo, pois o Brasil já fez parte de uma missão de paz na Palestina e na região do Canal de Suez e da Península do Sinai. Em 1956, quando foi criada uma missão de paz para impedir os ataques de Israel ao Egito e ao povo palestino em Gaza. Como o senhor interpreta o fato da maior parte dos países do mundo não estarem conseguindo fazer o suficiente para deter o genocídio e a República Islâmica do Irã, as demais organizações do Eixo da Resistência terem sido as organizações que de fato se colocaram ao lado do povo palestino nesse momento, junto com bilhões de pessoas no mundo que também tentaram apoiar da forma que puderam, o povo palestino?
Embaixador Abdollah Nekounam – Vejam, no que diz respeito à visão de princípio da República Islâmica do Irã sobre a questão da opressão e injustiça praticadas pelo regime sionista contra o povo palestino, é necessário que eu esclareça um ponto com mais detalhes.
Infelizmente, em nível internacional, existem tomadores de decisão que baseiam todas as suas ações no apoio ao regime sionista, criando uma interconexão extremamente complexa entre as visões desse regime, de um lado, e as ideologias das potências coloniais e dominadoras, de outro. Nessas circunstâncias, a sobrevivência de cada uma dessas partes depende da sobrevivência da outra, e as ações do regime sionista estão entrelaçadas com as das potências hegemônicas.
Esses grupos, por meio de instrumentos midiáticos, marginalizam qualquer indivíduo ou corrente que se oponha a essa visão dominante, rotulando-os de “antissemitas”. No entanto, hoje no mundo, uma grande massa de pessoas e de opiniões públicas declara com clareza que não há qualquer hostilidade contra os judeus; a oposição é às ideias políticas e à atuação dos sionistas.
Além disso, o confronto dos povos do mundo é contra a negação dos direitos de uma nação que vivia em sua própria terra e que foi forçada a sair dela por meio de deslocamentos compulsórios, enquanto pessoas oriundas de outras regiões foram levadas para lá e assentadas por meio da política de colonatos, estabelecendo um Estado que não reconhece nenhum direito dos habitantes originais daquela terra.
Nós, como República Islâmica do Irã, já apresentamos há alguns anos uma proposta prática e viável para sair dessa situação. Essa proposta foi registrada nas Nações Unidas e consiste na realização de um referendo com a participação de todos os habitantes originários da Palestina — muçulmanos, judeus, cristãos, e qualquer pessoa que viva autenticamente naquela terra. Esses indivíduos participariam de uma consulta popular para decidir o tipo de governo, de Estado e de sistema que desejam ver estabelecido para decidir o destino daquela região.
Em todo caso, essa situação não pode continuar indefinidamente — uma realidade na qual os povos e legítimos donos de uma terra permanecem sob opressão, fome, massacre, prisão e tortura. É imprescindível encontrar uma solução justa e humana para essa questão.
Thiago Ávila – Embaixador, o senhor muitas vezes falou sobre o papel do Islã na promoção da paz e da justiça. Eu gostaria de perguntar ao Senhor qual o papel que o senhor acredita que deveriam ter pessoas que nesse momento estão preocupadas com a guerra e que sonham com um planeta de paz, de bons, conviveres, onde haja justiça social e onde as pessoas possam viver em liberdade. O que o senhor acredita que quem sonha com a paz no mundo deve fazer nesse momento?
Embaixador Abdollah Nekounam –
É importante destacar que as concepções apresentadas no Islã são fundamentadas nas relações humanas e na valorização da dignidade da humanidade. No Islã, acreditamos que o ser humano é o representante (khalifa) de Deus na Terra — ou seja, o valor do ser humano está num nível tal que ele representa Deus. Naturalmente, essa visão é comum a todas as religiões divinas, nas quais o respeito à humanidade e a cada ser humano ocupa uma posição elevada e sagrada.
Não se pode, em nome de uma religião e sob o pretexto de sua ligação com Deus, condenar uma parte da população de uma terra às piores condições possíveis — à tortura, à fome e à destruição de suas condições básicas de vida. Aquela criança pequena em Gaza, que segura um prato de comida na mão e espera por horas na esperança de encontrar algo para comer, ela também é um ser humano, e é representante de Deus sobre a Terra. Ninguém no mundo tem o direito de se considerar humano, enquanto submete outros seres humanos a tais condições.
Os problemas que temos com o regime sionista estão justamente inseridos nesse conjunto de princípios e valores. Nós defendemos o respeito à dignidade humana. Enquanto isso, eles não consideram parte da humanidade digna desse respeito, e buscam impor seus interesses políticos, partidários e tribais ao resto do mundo.
É exatamente isso que os povos do mundo têm mostrado rejeitar. A República Islâmica do Irã se orgulha de manter uma visão de princípios em defesa da humanidade e está disposta a pagar qualquer preço para preservá-la.
Esperamos pelo dia em que a humanidade, tal como é valorizada na visão divina de Deus, também seja reconhecida com esse mesmo valor entre os próprios seres humanos. Nesse dia, não haverá colonialismo, nem apartheid, nem exploração humana. Tudo será baseado no respeito à dignidade humana.
Thiago Ávila – Embaixador Abdollah, eu queria dizer que foi primeiro uma honra estar com o senhor. Eu queria dizer que a maior parte da população brasileira é solidária ao povo palestino e também compreende que a agressão ao Irã é inaceitável nesse momento. E pode ter certeza que do povo brasileiro vai ter muito carinho, muita vontade de paz e muita vontade de ver a solidariedade entre os povos.
O povo brasileiro tem o histórico de ser muito solidário, inclusive de ter ótimas relações com a República Islâmica do Irã e com todos os países daquela região. Eu espero que em breve a gente possa dar notícias de que a paz está sendo construída. Para isso, a gente precisa enfrentar os inimigos da nossa geração. Assim como outras gerações derrotaram o apartheid na África do Sul, derrotaram o nazismo, o fascismo. A gente tem que ter coragem nesses momentos das grandes batalhas do nosso tempo.
Eu agradeço muito ao Senhor pelo tempo. Eu tenho certeza que essa conversa abre muitos horizontes para a população brasileira, que infelizmente não tem o acesso à verdade do que acontece se depender dos veículos comuns. Então eu agradeço a oportunidade. Conte conosco. No que depender de nós para transmitir informação livre e desejo um grande abraço e toda força a cada pessoa que está em Teerã, está em Esfahan, que está em Qom ou qualquer cidade da República Islâmica do Irã, assim como qualquer pessoa que está na Palestina, no Líbano, no Iêmen, na Síria, em qualquer outro país que é vítima do imperialismo e do sionismo.
Eu tenho certeza que o futuro vai poder contar essa história como uma história de libertação de um grande mal que, felizmente, os povos do mundo estão acordando para a necessidade de derrota-lo. Muito obrigado, Senhor Embaixador.